Monday, January 30, 2006

O tigre

As manhãs de segunda-feira são especialmente macias em Amsterdão. Não sei ao certo porquê, mas as lojas estão fechadas até ao meio-dia. Ou então, estao semi-abertas, em lentos descarregamentos de camiões gordos atravessados nos passeios. Uma pessoa, mesmo atrasada como eu, sente uma certa calma provinciana no ar, abranda o pé no pedal, demora-se a olhar o pacato despertar do comércio. É como se a cidade se espreguiçasse estremunhada depois de um fim-de-semana de borga. Como se dissesse: "O quê? Já? Aaaaoohhhh....!"
Sei do que estou a falar: sou perita em preguiça. Sou perita em acordar tarde demais. Em fazer mil gestos inúteis, grãos de areia que atrapalham ainda mais a engrenagem da saída de casa. Sou perita em chegar atrasada. Em desculpas, verdadeiras e esfarrapadas, como esta: ontem acabei de ler o "Life of Pi".

Ainda estou a pensar no tigre. Por causa do tigre, tão cor-de-laranja, tão perturbante, fiquei até às tantas acordada, olhos em riste. Nao há sono que vença este tigre.

Penso na neve em Lisboa, ontem. Nas vozes incrédulas dos meus amigos do outro lado da linha. No lindo dia de sol e na mão do meu marido, que me puxou toda a tarde, num passeio estranho: os olhos postos na arquitectura do Oud Zuid, no gelo do Vondelpark, nas ruas sossegadas, a alma toda ela em Lisboa. Na palavra "prosperidade" e na criancinha numero 324 que visitámos depois do passeio. No tigre, outra vez. O tigre, o tigre.

Thursday, January 12, 2006

O fim do mundo


Da janela do comboio vejo um microondas dentro de uma cozinha dentro de um moinho de vento que é um café. A seguir, uma escola de dança. A estação. Uma placa azul a dizer "Delft".
(...)
O tempo é escuro e muito denso. Quanto mais para norte, mais Inverno. Aqui sem o encanto das florestas e das neves brancas. Casas, milhões de pessoas, lama, estradas, a mão do Homem em tudo, em cada esquina, em cada árvore estrategicamente plantada. A Holanda parece-me hás vezes uma arrepiante visão do futuro. Como se o mundo inteiro caminhasse para aqui.
(...)
À minha frente uma rapariga come batatas fritas com maionese. Tenta abrir com os dentes uma garrafa de Fanta. Quase me ofereço para ajudar, mas já vou tarde. Os nossos olhares encontram-se. É embaraçoso. Derrotada, atira com a garrafa para um saco de papel. Volta às batatas.
Olho pela janela opaca e escrevo:

DARK VISION
I'm so scared with the mediocracy of the world. We're all going downhill. We all want microwaves, sugared drinks, new clothes every season. And why shouldn't it be so? Why shouldn't it be the rightful dream of every worker?
I need imported scents, and imported food. A car and a house. Plaintickets three times a year.
It doesn't matter if I'm whearing my grandfather's sweaters and they're thirty years old. I still need my bleached white cotton tampoons every month.
Let's eat more. Cut more trees. Build more houses. The world is going to explode and there's nothing we're going to do about it. We can't stop consuming. We're trapped.

Na estação central, compro um ramo de flores para o meu marido. Como uma sandes de atum. Um sumo ridículo de laranja/morango numa garrafinha de plástico colorida. Creme Nívea. Tampões, branquinhos. Algodões, branquinhos...
A menina da caixa pergunta-me se quero um brinde. "Maybe it's more a man's thing..." Olho, curiosa, para o pacote. O brinde é um molde para fazer gelo na forma de cinco rechonchudas senhoras.
Chama-se ICE BABES.

Estamos todos fodidos.